sábado, 23 de abril de 2011




ESTRANHO AMOR




Que amor é esse?
Amor de punhal,
Solferino,
De areia ensaguentada,
cruz arrastada
Em meio ao cruel tumulto.
-Que amor é esse, minha mãe?
A mãe fica muda.
Alguém que me responda?
Nada. Só hoje as estrelas soluçam.
Gotejam suor os lombos da terra,
seguimos por uma estrada única.
Almas lívidas, almas pálidas,
Caminham sob luz profusa
Olhos quase cegos Te procuram.
Lançamo-nos sobre Teus pés,
Beijar teus pés,
Banha-los em lágrimas,
Embalsamá-los,
Pensar-lhe as feridas.
Hoje somos nós
Que tomamos o teu corpo,
Abraçamo-lo como mandou o Anjo.
Que amor é esse?
Perguntamos sem voz.
Látego, sôfrego,
Trago-o como fogo.
Água, lava-me
Este amor de louco.
Jesus, tua cruz, tua loucura.
À meia noite me calo
Em prece de menina que sonha,
Soluço palavras imensas de carinho:
Acredito nele
Mas não me dizes
Que amor é esse tão estranho

domingo, 17 de abril de 2011

UMA LINGUAGEM PARA O TÉDIO

Reflexões sobre o livro Louco no Oco sem Beiras de Frederico Barbosa


A revolução estética fundada no Movimento Modernista nos trouxe inovações definitivas, pelas modificações nas estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Estas modificações incidem sobre o significante e não casualmente os experimentalismos modernistas integram os mapas inventivos onde se situam poetas como Mallarmé, Rimbaud, Apollinaire, Valery, Maiakovsky, Pound, dentre outros nomes para os quais a palavra desvincula-se do seu significado superficial ou corrente e é explorada ao limite nas suas possibilidades linguísticas .

O divisor de águas desses tempos pós-modernos foi empreendido nos laboratórios do Modernismo da fase heróica e muito deve aos experimentalismos em prosa e verso de um Oswald de Andrade, por exemplo e, de seguida, ao refinamento em Manuel Bandeira, mestre de nossos melhores versos livres. Com mais instrumentos nas mãos e todo sentimento do mundo floresce nesse mesmo terreno a poética anti-lírica de Carlos Drummond de Andrade.

Águas rolaram até chegarmos à busca do rigor formal refletido num projeto poético o mais desvinculado possível do pitoresco e do sentimental e que nos contempla com um de nossos extraordinários poetas, João Cabral de Melo Neto. O poeta pernambucano deixa-nos o legado de uma poesia que une a concepção do poema como produto à de participação social, atingindo um lirismo substantivo. Aspectos de sua poesia são colocados pela crítica como uma antecipação ao Concretismo. No Brasil dos anos 50, coexistiam as correntes de uma poética voltada para a invenção do poema em si e a de participação social através da qual evolui até os dias de hoje o poeta Ferreira Gullar, ele mesmo um precursor da poesia concreta, com a qual se desvinculou por optar por uma mensagem de cunho político-ideológica.

O projeto concretista retomará nos anos 50 a partir de Noigrandes, com atitudes, temas e formas que se estabeleceram no Movimento Modernista, privilegiando, radicalmente, antes a forma que a temática. O poema é identificado como objeto de linguagem. A arte é techné e sob esta premissa unem-se no mesmo espaço os projetos experimentalistas das artes plásticas, da música e do cinema, como nos lembra Alfredo Bosi, (p.529). Objetivando conceber um poema como uma estrutura verbo-visual, o concretismo apresenta propostas tais como a substituição da estrutura frásica pela de uma sintaxe espacial. Seria a aventura de mergulhar na representação do fragmentado mundo moderno regido pelo capitalismo, pelos mass media, pelo som dos comerciais e os textos fáceis, automatizados da linguagem publicitária. A mimetizção desse discurso não se faria através de versos lineares mas por uma dramática ruptura nos campos semânticos, sintáticos, léxicos e morfológicos. Ainda assim esta poética não estaria desvinculada dos conteúdos ideológicos e sociais sem o que não chegaria a cumprir a alta função estética e comunicativa da poesia.


TENDÊNCIAS

A poesia contemporânea não parece estar aprisionada em nenhuma cartilha estética. A produção poética desses nossos tempos tem na “releitura do arquivo de formas da tradição e na re-construção do verso suas marcas mais visíveis. Para alguns críticos, leitores e/ ou poetas trata-se de “uma nova estética do rigor”, segundo observa Nonato Gurgel no seu artigo “Territórios da poesia moderna”, (p. 25 ) Para este estudioso há alguns procedimentos estéticos que norteiam a produção poética na atualidade: o culto à forma, sugerindo o desejo de releitura, simulação, citação, intertexto, tudo isto calcado na tradição literária. Nesse caso, não se propõe uma ruptura das formas da tradição como se fazia no passado, quando uma estética se estabelecia às custas do rompimento com a linguagem imediatamente anterior. Há que se aproveitar as lições da tradição e contextualiza-la. Memória e informação conjugam-se nessa nova poética que coloca em relevo o material referente refletindo, no entanto, os paradigmas e saberes produzidos na pós-modernidade, apresntando-se, por sua, interligados multidisciplinarmente (Gurgel, p 26 ).

A poesia contemporânea construirá sua identidade pela diferença com a tradição. No livro do autor pernambucano Frederico Barbosa, Louco no Oco sem Beiras - Anatomia da Depressão, (2003) identificamos marcas dessa nova estética. O livro aborda os temas do tédio, da angústia, da melancolia, estados que culminam numa depressão difusa manifesta numa vida que não encontra sentido. O tédio e a melancolia são estados de alma que fundamentam a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre. Antoine de Roquertin é o protagonista de seu livro A Náusea, o romance filosófico que publicou em 1938.

No processo de preparação da biografia do Marquês de Rollebon o personagem, que é um historiador, desencanta-se não só com a sua vida mas com a de toda humanidade. Sente aversão pela condição humana e suas próprias conclusões de cunho niilista perturbam -no de tal forma que ele se vê como um estranho, um louco, quase. Já o título do livro de Frederico Barbosa aponta-nos um sujeito poético vivendo uma existência insana, dentro de um espaço geográfico indefinido – o oco, lugar que não encontra demarcações, que não permite a adequação, ou seja, sem beiras. Este é o espaço do tédio e da melancolia, estados que se representam colocando a ênfase no significante e cujo processo de versificação privilegia os aspectos visuais e sonoros das palavras.

No plano discursivo Louco no Oco sem Beiras se constrói como um único e grande poema, apresentando-se como fragmentado ao longo de suas 81 páginas. O volume divide-se em duas partes intituladas de “O Peso” e “O P.S”, (sugerindo a sigla para a expressão em latim “post scriptum”). A indicação dessa divisão na página encontra-se no sumário e está disposta em um ideograma, com os dois ínter - títulos postos na vertical. O poema de abertura leva-nos direto à ideia de um sujeito poético em luta com a monotonia imposta por uma rotina massacrante, alienante, desesperadora, num mundo que nos convida à reprodução da mesmice, tal como se lê nos versos: “o acordar é/o grave o// dia o/diabo o/ diabólico o// sono o/sono o// horror o/ chumbo o// mais que profundo o// todo o dia o/ sempre o/ diabo azul o/ branco o/ despertador”. A simples tecnologia de um relógio que desperta é o símbolo de uma vida em tormento.

Nota-se nos poemas, todos sem titulação e no nível textual também quebrando a convenção das maiúsculas no início da frase, a construção de versos curtos nos quais identificamos a presença do recurso da paronomásia, que consiste na exploração das semelhanças sonoras, por aliterações e assonâncias. O predomínio é das vogais abertas, tudo isto disposto numa sintaxe que se utiliza do espaço de maneira convencional e, no campo léxico, a escolha dos vocábulos procura representar a fala de uma pessoa em agonia, algo repetitiva, como se verifica nestes versos: estranha urgência/ essa,/distorcida em grito/ de raio paralisador//estranha urgência/essa/certeza da /essa. A musicalidade é obtida antes pela harmonia das combinação silábicas do que pela melodia propriamente, como mimética da monotonia e de uma fala em solilóquio.

A loucura a que se refere o título não é propriamente a dos manicómios mas a da vida que se vive sem que se tenha o privilégio de uma escolha e, no limite, a que lhe determinou o destino ou a má sorte: começo-me/ como quem grita sem/luz sem voz sem vis sem vez sem mais// desfocado/fora de faro/formigando em/ câmera lenta //sem coragem/ sem o que me dispare // vou. O verbo “começar” é colocado na forma reflexiva neste poema em que o sujeito poético vai gradativamente enfraquecendo pela inadequação e sem a consciência da autonomia no seu rumo. O impulso se dilui pela existência de um grito sem que se possa emitir a voz, um grito estrangulado ou ensurdecido no meio de uma multidão que se move quase automaticamente em direção programada ou imposta. O sujeito poético desloca-se em câmera lenta, entorpecido, quer dizer, sem forças e “vai” – para onde?


INTERTEXTUALIDADE

Como enfatizou Nonato Gurgel esta poesia da nova estética do rigor constrói-se pela leitura e releitura da tradição literária. É assim a poética de Frederico Barbosa e de acordo com Amadeu Ribeiro Neto, que assina o prefácio, o sujeito lírico é a única voz presente na construção dos poemas, muito embora sua dicção assuma a expressão coletiva. Para ele, esta voz “é a de um indivíduo ( e de uma coletividade) que, paradoxalmente, protesta insatisfeito antes de mais nada, pela falta” ( p. 14). No entanto, apoiam esta voz outras vozes, as anteriores ao seu texto, no qual encontram-se registrados outros códigos artísticos pelo recurso da intertextualidade.

A página de abertura traz duas citações, de Guimarães Rosa e de Edgar Allan Poe. Trata-se de dois autores de estilos e épocas diversas unindo-se pela vontade da fala, que se expressa ou não de modo muito particular por cada personagem. A citação que se refere ao personagem - contador de histórias de Guimarães Rosa, evoca o seu sertão do tamanho do mundo e dá origem ao título do livro. “Participa” ainda desse livro outro autor romântico, Casimiro de Abreu. O sujeito lírico lembrará seus oito anos, situados numa aurora tão semanticamente diferente quando nada era tão lírico e suave, pois ele já ardia na certeza de seu deslocamento social precoce. ( p. 34.). O spleen que ocorre em Byron também ocorre no sujeito entediado e triste, o diabo o trouxe, como se pode ler no poema da página 76.

O magro cavalo de D. Quixote talvez não o isolasse tanto como quando segue calado no seu carro, tal como sugere o poema da página 55. Encontramos também neste livro, que reúne tendências, versos lineares esboçando um paradoxo sobre o tema da morte, tal como se lê: “o que me espanta não é a morte/ é ouvi-la tão aguda/que por sorte não se escuta”(p. 45 ). E tal como o personagem de Albert Camus, o sujeito lírico desses versos sobre a melancolia também descobre que está na vida como um estrangeiro: “ de Camus em diante/ deitava descrente/ e me deixava sentir/na cama morto o/morto”( p.39). Nota-se na construção dos versos a colocação do artigo definido depois do substantivo como a indicar indiferença e indefinição. Tanto faz que a “coisa” que o artigo define não esteja, sistematicamente, ligada ao sujeito.

O poeta aborda a dispersão, a banalização da fala pelos diálogos fragmentados da comunicação virtual em poemas que ironizam os chats na internet e o telefone celular, tal como se lê: “papo de chat/ chato chato/ mal de e-mail/virtualidades banais/ e meu tempo se vai/on line”. Utilizando-se do recurso da intratextualidade o poeta também empreende um diálogo com sua própria produção. O poema que inicia o livro é o mesmo que encerra sua primeira parte, diferenciado, entretanto, por uma construção nova através da inversão de algumas estrofes, sugerindo a teia labiríntica onde o sujeito lírico se insere. Também pela abordagem, por exemplo, do temas ligados ao seu livro Nada sobre Nada, que ele publicou em 1994.

Desse modo o poeta rompe com as amarras de um texto linear com a previsão do começo, meio e fim. Este é um discurso que sugere um círculo ou o sinal do infinito, na representação, talvez, desse nosso momento histórico, apresentando paradigmas que até se contradizem e que não nos permite certificações exatas para o Objeto, a Coisa, o Ser, como tão bem refere Amador Ribeiro Neto. Um tempo da des-utopia, que melhor será representado por esta proposta da des-poesia que um dia um poeta concretista proclamou.



REFERÊNCIAS

BARBOSA FILHO, Hildeberto. A Luz e o Rigor: reflexões sobre o poético. João Pessoa: Manufatura, 2006.

BARBOSA, Frederico. Louco no Oco Sem Beiras. São Paulo:Ateliê Editorial, 2001.

BARRENTO, João. O poema é uma hipótese.In: O Arco da Palavra. São Paulo: Escrituras, 2006. ELIOT, T.S. A função Social da Poesia. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães editores, 1997. MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e Utopia. São Paulo: Escrituras, 2007.

GURGEL, Nonato. Territórios da moderna poesia… PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ___________. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SECCHIN, Antonio Carlos. Poesia e Desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.