terça-feira, 24 de janeiro de 2012


                                   UMA LINGUAGEM PARA O TÉDIO


                         Reflexões sobre o livro Louco no Oco sem Beiras 

                                                de Frederico Barbosa                                                            



              A revolução estética fundada no Movimento Modernista trouxe-nos inovações  definitivas pelas modificações nas estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Estas modificações incidem sobre o significante e não casualmente os experimentalismos modernistas integram os mapas inventivos onde se situam  poetas  como Mallarmé, Rimbaud, Apollinaire, Valery,  Maiakovsky, Pound, dentre outros nomes para os quais a palavra desvincula-se do  seu significado superficial  ou corrente e é explorada ao limite nas suas possibilidades linguísticas.

             O divisor de águas desses tempos pós-modernos foi empreendido nos laboratórios do Modernismo da fase heróica e muito deve aos experimentalismos em prosa e verso de um Oswald de Andrade, por exemplo e, de seguida, ao refinamento  em Manuel Bandeira, mestre de nossos melhores versos livres. Com mais instrumentos nas mãos e todo sentimento do mundo floresce nesse mesmo terreno a poética anti-lírica de Carlos Drummond de Andrade. Águas rolaram até chegarmos à busca do rigor formal refletido num  projeto poético o  mais desvinculado possível  do pitoresco e do sentimental e que nos contempla com um dos nossos mais extraordinários poetas, João Cabral de Melo Neto.

              O  poeta pernambucano deixa-nos o legado de uma poesia que une a concepção do poema como produto à  da participação social, atingindo um lirismo substantivo. Aspectos de sua poesia são colocados pela crítica como uma antecipação ao Concretismo. No Brasil dos anos 50, coexistiam  as correntes de uma poética voltada para a invenção do poema em si e a de participação social através da qual evolui até os dias de hoje o poeta Ferreira Gullar, ele mesmo um precursor da poesia concreta  a que se desvincula por optar por uma mensagem de cunho  político-ideológica.

            O projeto concretista retomará nos anos 50 a partir de Noigrandes, com atitudes,   temas e  formas que se estabeleceram no Movimento Modernista, privilegiando, radicalmente, antes a forma que a temática. O poema é identificado como objeto de linguagem. A arte  é techné e sob esta premissa unem-se no mesmo espaço os projetos experimentalistas  da artes plásticas, da música e do  cinema.

            Objetivando conceber um poema como uma estrutura verbo-visual, o concretismo apresenta, sobretudo, propostas tais como a substituição da estrutura frásica  pela de uma sintaxe espacial. Seria a aventura de mergulhar na representação do fragmentado mundo moderno  regido pelo capitalismo, pelos mass media, pelo som dos comerciais e os textos fáceis, automatizados da linguagem publicitária.  A mimetizção desse discurso não se faria através de versos lineares mas por uma dramática ruptura nos campos semânticos, sintáticos, léxicos e morfológicos. Ainda assim esta poética  não   estaria desvinculada dos conteúdos ideológicos e sociais pelo que não chegaria a cumprir  a alta função estética e comunicativa da poesia.



TENDÊNCIAS

                A poesia contemporânea não parece estar aprisionada em nenhuma cartilha estética. A produção poética desses nossos tempos tem na releitura  da tradição e na re-construção do verso suas marcas mais visíveis e para alguns críticos, leitores e/ ou poetas esta é a baliza de “uma nova estética do rigor” .( Gurgel, p.25 ). Para este estudioso há alguns procedimentos estéticos que norteiam a produção poética na atualidade: o culto à forma, sugerindo o desejo de releitura, simulação, citação, intertexto, tudo isto calcado na tradição literária. Nesse caso, não se propõe uma ruptura das formas da tradição como se fazia no passado, quando uma estética se estabelecia às custas do rompimento com a linguagem imediatamente anterior. Há que se aproveitar as lições da tradição e contextualiza-la. Memória e informação conjugam-se nessa nova poética que coloca em relevo  o material referente, refletindo, no entanto, os  paradigmas e saberes produzidos na pós-modernidade, por sua vez,  interligados multidisciplinarmente.

          Nesse sentido,  a  poesia contemporânea construirá sua identidade também pela diferença com a tradição. No  livro  do autor pernambucano Frederico Barbosa, Louco no Oco sem Beiras - Anatomia da Depressão, (2003) identificamos  marcas  dessa nova estética. O livro aborda os temas do tédio, da angústia, da melancolia, estados que culminam numa depressão difusa manifesta numa vida que não encontra sentido. O tédio e a melancolia são estados de alma que fundamentam a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre. Antoine de Roquertin é o protagonista de seu livro, A Náusea, o romance filosófico que publicou em 1938. No processo de preparação da biografia do Marquês de Rollebon o personagem, que é um historiador,  desencanta-se não só com a sua vida mas com  a de toda humanidade. Sente aversão pela condição humana e suas próprias conclusões de cunho niilista perturbam-no de tal forma que ele  se vê como um estranho, um louco, quase.

               Já o título do livro de Frederico Barbosa aponta-nos um sujeito poético vivendo uma existência insana, dentro de um espaço geográfico indefinido – o oco, lugar que não encontra demarcações, que  não permite a adequação, ou seja, sem beiras. Este é o espaço do tédio e da melancolia, estados que se representam nesse livro  com a ênfase no  significante e cujo processo de versificação  privilegia os aspectos visual e sonoro das palavras. No plano discursivo, Louco no Oco sem Beiras   constrói-se como um único e grande poema,  apresentando-se como fragmentado ao longo de suas 81 páginas.

               O volume divide-se em duas partes, intituladas de “O Peso” e “O P.S”, (sugerindo a sigla para a expressão em latim “post scriptum”). A  indicação dessa divisão na página encontra-se no sumário por um  ideograma, com os dois ínter - títulos postos na vertical. O poema de abertura leva-nos direto à ideia de um sujeito poético em luta com a monotonia imposta por uma rotina massacrante, alienante, desesperadora,  num mundo que nos convida  à reprodução da mesmice, tal como se lê nos versos: “o acordar é/o grave o// dia o/diabo o/ diabólico o// sono o/sono o// horror o/ chumbo o// mais que profundo o// todo o dia o/ sempre o/ diabo azul o/ branco o/ despertador”.  A  simples tecnologia  de um relógio que desperta é o símbolo de uma vida  em tormento. 

              Nota-se nos poemas, todos sem titulação e no nível textual também quebrando a convenção das maiúsculas no início da frase, a construção de versos curtos nos quais identificamos a presença do recurso da paronomásia, que consiste na exploração das semelhanças sonoras, por aliterações e assonâncias. O predomínio é das  vogais abertas, tudo isto disposto numa sintaxe que se utiliza do espaço de maneira convencional, e no campo léxico, a escolha dos vocábulos  procura representar a fala de uma pessoa em agonia, algo repetitiva, como se verifica nestes versos: estranha urgência/ essa,/distorcida em grito/ de raio paralisador//estranha urgência/essa/certeza da /essa. A musicalidade é obtida antes pela harmonia das combinação silábicas do que pela melodia propriamente, como mimética da  monotonia e de uma fala em solilóquio.

              A loucura a que se refere o título não é propriamente a dos manicômios mas a da vida que se vive sem que se tenha o privilégio de uma escolha e, no limite, a que lhe determinou o  destino  ou  a má  sorte: começo-me/ como quem grita sem/luz sem voz sem vis sem vez sem mais// desfocado/fora de faro/formigando em/ câmera lenta //sem coragem/ sem o que me dispare // vou. O verbo “começar”  é colocado na forma reflexiva neste poema em que o sujeito poético  vai gradativamente enfraquecendo  pela inadequação e sem a consciência da autonomia no seu rumo. O impulso se dilui pela existência de um  grito sem que se possa emitir a voz. Um grito estrangulado ou ensurdecido no meio de uma multidão que se move quase automaticamente numa direção  programada ou imposta.  O sujeito poético desloca-se em câmera lenta, entorpecido, quer dizer, sem forças e “vai” – para onde?    

         

INTERTEXTUALIDADE

               Identificamos no projeto poético de Frederico Barbosa esta poesia da nova estética do rigor, construnindo-se pela leitura e releitura da tradição literária. De acordo com Amadeu Ribeiro Neto, que assina o prefácio, o sujeito lírico é a única voz presente na construção dos poemas, muito embora sua dicção assuma também a expressão coletiva. Para ele, esta voz “é a de um indivíduo  ( e de uma coletividade) que paradoxalmente, protesta, insatisfeito, antes de mais nada, pela falta”( p. 14). No entanto, apoiam esta voz outras vozes  anteriores ao presente  texto, no qual encontramos o   registro de outros códigos artísticos pelo recurso da intertextualidade.

                A página de abertura traz duas citações, de Guimarães Rosa e de Edgar Allan Poe. Trata-se de dois autores de estilos e épocas  diversas, unindo-se pela vontade da fala, que se expressa (ou não) de modo muito particular por cada personagem. A citação que se refere ao personagem - contador de histórias de Guimarães Rosa, evoca o seu  sertão do tamanho do mundo e remete ao próprio  título, “Loco no oco sem beiras”. “Participa” ainda desse livro o autor romântico, Casimiro de Abreu. O sujeito lírico lembrará seus oito anos, situados numa aurora tão semanticamente diferente, quando nada era tão lírico e suave pois ele já ardia na certeza de um deslocamento social precoce. ( p. 34.). O spleen  que ocorre em Byron também ocorre no sujeito entediado e triste, o diabo o trouxe, como se pode ler no poema da página 76.

                  O magro cavalo de D. Quixote talvez não o isolasse tanto como quando segue calado no seu carro, tal como sugere o poema da página 55.Ainda apontando outras tendências, encontramos no texto de FB,  versos lineares ao esboçar um paradoxo sobre o tema da morte,  tal como se lê:  o que me espanta não é a morte/ é ouvi-la tão aguda/que por sorte não se escuta”(p. 45 ). E tal como o personagem de Albert Camus, o sujeito lírico, imerso  na melancolia,  também descobre que  está na vida  como um estrangeiro: “ de Camus em diante/ deitava descrente/ e me deixava sentir/na cama morto o/morto”( p.39). Nota-se na construção dos versos a colocação do artigo definido depois do substantivo como a indicar  indiferença e indefinição. Tanto faz que a “coisa” que o artigo define não esteja, sistematicamente, ligada ao sujeito.

                O poeta aborda a dispersão, a banalização da fala pelos diálogos fragmentados da comunicação virtual em poemas nos quais ironiza os chats na internet e o telefone celular, tal como se lê: “papo de chat/ chato chato/ mal de e-mail/virtualidades banais/ e meu tempo se vai/on line.Utilizando-se do recurso da intratextualidade o poeta também empreende um  diálogo com sua própria produção. O poema que inicia o livro é o mesmo que encerra sua primeira parte diferenciado, entretanto, por uma construção nova pelo recurso da inversão de algumas estrofes, sugerindo a teia labiríntica onde o sujeito lírico se insere. Também pela abordagem, por exemplo,  de temas ligados ao seu livro Nada sobre Nada, publicado em 1994.

                Desse modo, o poeta rompe com as amarras de um texto linear com  a previsão do começo, meio e fim. Este é um discurso que sugere um círculo ou o sinal do infinito na representação, talvez, desse nosso momento histórico, apresentando paradigmas que até se contradizem e que não nos permite certificações exatas para o Objeto, a Coisa, o Ser, como  tão bem refere  Amador Ribeiro Neto, que assina o prefácio. Um tempo da des-utopia, que melhor será representado por esta proposta da despoesia que um dia um poeta concretista proclamou.



REFERÊNCIAS



BARBOSA FILHO, Hildeberto. A Luz e o Rigor: reflexões sobre o poético. João Pessoa: Manufatura, 2006.

BARBOSA, Frederico. Louco no Oco Sem Beiras. São Paulo:Ateliê Editorial, 2001.

BARRENTO, João. O poema é uma hipótese.In: O Arco da Palavra. São Paulo: Escrituras, 2006.

ELIOT, T.S. A função Social da Poesia. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães editores, 1997.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e Utopia. São Paulo: Escrituras, 2007.

PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

___________. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SECCHIN, Antonio Carlos. Poesia e Desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.